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sábado, 26 de abril de 2014

Ave Mansa

Era passado... Todos os cães ladravam
A água escoava o rio
Lama leve, ligeira... Passava
Os pés molhados, nadadeiras
E como tal flor de pele laranjeira, se deitava ao bem-te-vi
Aonde e ali, aonde queira
Se via logo ao passar, qualquer poeira
Que tal e qual, qualquer cegueira
Via mais longe que qualquer, e tanto, mais fogueira
Que queimava todo lado, toda água, todo canto
Escondia sob o tapete oco, as trincheiras da morte
Com o compasso em riste e total sorte
Se via a sorrir, como finge, como pode
Através da vidraça, já embaçada pelo orvalho cedo
Já sentia o caminhar negro e puro, das crianças a solta
Se fossem vento, manavam o tempo
Como mão de velho, tão calma e pesada, mais chegada a morte
Com mais vida, que a própria vida
Até se via a grama desenhar o corpo, lá fora
mas aqui dentro
É que ocupava espaço, é que ocupava o tempo
Espaço que era curvo, que era lasso, que era todo
Espaço esse, dentro de mim que não existe tempo, nem nas mais rugas víceras
Nem nos mais frouxos sentimentos
Me senti pesado, caí sobre mim
Me senti passado, o hoje ergueu-me em estátua de vidro
Polida e muda, como burro
Que chegando ao caule d'árvore, ouviu ave dizer:
-Eu sou o seu maior problema e minha própria solução.

Imaginação

Acordei, como todos os dias acordo
Senti que era livre voltar aonde não ia
Ao pé da cama, estava amarrada minha alma
Nua, sem zelo, porém com tudo que podia
Comida, água limpa, serenata noturna, pássaros coloridos
Na minha sorte existe um mundo, que gira, e some aos fundos
Fechei os olhos e tive por instante a sensação da altura
De estar acima da vida, de caminhar descalço
Como é bom!
Ter livre suas mãos
Não apalpar o oco
ser obsoleto, sim!
Porém ser frágil, inútil, como um animal no tapete
Mas ele sim, sabe o que é viver
Sabe ter saudade
Ter uma solidão de indivíduo, mas não apenas existir
Sentir o sabor da vida, em sua língua terrestre
Sentir o gosto do ar, e olhar o humano debaixo para cima
Ele sabe o que é ter sabedoria, e tem plena consciência de sua posição
Como todo amigo deve saber
Alcançar seus problemas, com mãos findas
Enxergando os outros, como palmeira se abraçando numa ventania estelar.

Esperança

Desistir do passado
me deixa ao estado
desapego do não

Não vivo sob o caminho
Sobre ele, existo
Contigo e sigo
na finda estação

Mas passo pela vida
Como um míssil equino
sem sombra sem sino
Até por baixo do chão

Mas dela guardo o que tive
Terei e tivera
O que mais esperar de nós
Se não uma infinita quimera

Porque no voo da vida, desistir, é para quem não tem asas.

Desistir

Hoje tive o que pedi:
Tive todas as horas do mundo
Tive as lembranças, as viagens, as sensações
Pude rever minha família, pude sentir que as lágrimas eram verdade
De mentira, bastava a face que rodeava o céu
A flor que desenterrava os ossos; As mãos que batiam palma no altar
Hoje mesmo tive a certeza dos homens
Que há anos corriam como burros, e hoje pensam como sábios
Hoje tive vontade de voar...
Mas não me venderam as asas
Me deram água
Pude banhar-me em todas formas, em todos lados
De alma encharcada e mãos abertas
Pude receber todo amor que não tive nas incertezas
Nas meias vidas, no resto de morte, nos soluços inventados...

Não há distância maior que a felicidade
Ela é o caminho justo para seguir em frente
Quem não correr por essa estrada, se vê em apuros
até mesmo dentro do próprio quarto e coração
Ser, não é estar
Viver, não é existir
Sorrir, não é amar.

O Abismo

Ontem morri... Acordei com dois tiros no peito
E um mar de hipóteses vagando sobre o quarto
A pele moldada e frouxa, se debatia e abatida
Não havia flor que a corasse
Todo quarto em preto e cinza, como foligem
Sentia-se até o cheiro do fogo, brazando a alma
Na espinha, descia fervendo toda mágoa de uma vida avulsa
Sem paredes, sem teto, sem ruínas
Os olhos entreabertos, não mais que entreabertos, perpassava a loucura que a mente conduzia
Minha sombra era insosa, vagava atrás da luz de meu quarto
Sem abajur, o quarto era uma tormenta
e sem janela, janela d'alma, água vazia
A casa ruía em desprezo e saudade
Não se ouvia vozes, só lamentos
A rua em frente, um carnaval se passava
Todas as pessoas desnudas, alegres, e coloridas
Coloriam o preto de sua alma, enfim alma
Não se falavam, eram amigas
Minha casa, minha vida, minha morte
O que vem depois da morte?
Quem sabe outra vida
Não há flores no deserto, sob ele há imensidão
Permitia tão circuspecta forma, o espelho
Tão ávido, de forma que sentia as dores
O outro, me olhava, e não me via
Não me via por dentro, era um espelho sem alma
Eu já surdo, com as balas no peito, fadiguei
Li minha história em um livro sem páginas
Um livro de capa marcada, de quem já sabia onde viver
A minha ínfima área da vida, como um terraço
Era sujo, cheio de marca de pombos
Mas os pássaros que lá habitavam, faziam seus ninhos em formas sobre sua cabeça!
Meus óculos, minhas mordaças, minhas memórias, não existem mais
Hoje me tornei poça de sangue, como bicho do mato
Clautro, dentro de minha arma
Me tornei poça de solidão, como uma flecha errante
Senti que me perdoava, mas não ouvia o meu perdão.

O Exílio

Se passasse, como meramente anciã
Claustra, bêbada, com um galho entre os dentes
A velha batina, com a poeira de ontem
Pés soltos, terra nas unhas, unhas onde não há mais
Seguir os astros, com a fidelidade que os têm
Ver que uma estrela sempre soube que era mais que astro
Era órgão, dentro do peito, âmago!
Carinho de irmão
E como se entreabrisse, engolindo a saliva que já palpitava o gozo
Escorrendo pelo canto da boca, todo anelo, toda rocha inabitável da alma
Mesmo sabendo sobre a pedra, a pedra que não fala
Essa pedra que ao meu lado, caminha, ao desnortear sentimentos
De mudar a rota geométrica da lua
De fazer a vida real, o sentido da loucura
De sentir cortar a carne, sair o fel inodoro, ambíguo
de quem nos torna terreno
A terrível forma de lazer dos homens
De erguer os edifícios, as casas insalubres
as montanhas secas, os mares secos
As mortes secas
Mas como suspirasse uma forma mais louvável
Sentindo o gosto do verniz do caixão de zinco
Ter seu corpo coberto por uma pluma de chumbo
As entranhas transpirassem até de forma coloquial
Todo suor guardado durante anos
Se ver livre daquela máscara neutra
A cima do muro, por cima da vida
Os pelos, ainda ouriçados com o perfume que chega mais perto
As nádegas enrijecerem... A solidão subir entre as espinhas
Tudo se torna tão vazio
Quando o abraço é oco e cáustico
Sem força nem para fechar os olhos
Ter no abismo, a mais infinita salvação e exílio
Olhar para os pés em fome viva
Subindo as escadas, para o quarto
Tatear parede, sentir cada rosto em taipa
Até chegar a cama encharcada em lama
E com febre deitar-se, e sonhar que tudo acabou.

O Hóspede

Terminaria hoje sua despedida, em família
Como se não houvesse ninguém para escutar
Tal apelo, como um grito sobre a rotação da terra
Grito dentro de uma sala deserta
Socando as paredes, com tal força...
Socava o coração
De tal modo que sentia os seus passos chegando
Lado a lado, como pares de mortos
Que de nadar, afogava-se nas próprias lágrimas
Em total desespero, balbuciando qualquer nota, em soluço
Mas era tapada boca, por bocas
Não havia palavras a serem ditas, nem olhares presentes
O que havia era um infinito em questão
Tão incerto e louco, como uma beleza vazia
Olhava-se para ela e não via que ali, a beleza não existia
Era solidão.

O Instante

Um dia sinto que existi
Por não mais que um segundo, talvez milésimos
O que importa é que fui matéria
De indecifrável cor
Sentia que podia amar, amar mais do que podia
Só não tinha espaço para os passos
Que entre os dedos escapavam
Que entre as portas, se tornavam estrelas
Não sentia qualquer sentimento
Qualquer abalo sísmico ou circunspecto
Por ser homem: homem que rasteja, sem pedir esmola
Vi que os astros - de esferas- não eram mais do que calos
Soltos em mãos divinas
Não percebia, que de uma lágrima nasceria, com tanta beleza, todas as rosas do mundo
E que por mais que não estivesse descalço
sentia toda erosão, como ácido
derramar fuligem sobre mim
Em total lasso d'alma, me vi obrigado a derreter
me tornar vertigem em meio a multidão
Solidificar, enrijecer no espaço
E ser todo centímetro, em forma viva da hora nua.

O Óvulo

Um dia fui para casa, sem saber para onde ia
Fui temendo haver algo a mais, algo que não sabia
Descia ao todo, pelo pacto que formamos
Explorava a inexorável forma de viver, os outros, as aves, a vida...
Não temia -já temendo- o infinito, por ser findo
Observando cada telha, e mais telha, sobre a forma da vida
As casas, os mares, os Afonsos, os Silvas, até a morte
Que separou um casulo, da própria vida

Temia ter razão sobre tudo
Ter vivido tudo o que havia
Ter sentido todos os perfumes da terra
E ter a terra dentro de mim
Como um nódulo de amor
Um câncer, de eternidade imensa, de ser mais infinito até a última estrela

Não basta deixar, há de socorrer os abismos
Entre todas as lástimas: viver, mesmo sendo a primeira, é a única que vale a pena

Ter no ventre a forma de ser vida
Como pólen: germinando a passagem do vento
Sem deixar rastros, só certezas

Sinto saudade, sinto e acuso
todos que a deixaram só
Mas não existe natureza maio, que a vontade de tornar de novo, o novo
de sentir a paz, todos os dias, nos braços da felicidade.

Soube que era Assim

Trouxe o mar à areia
Traria até as estrelas, se soubesse flutuar...
Se soubesse flutuar, traria todo amor que voa para cá
Para todos saberem o que é amar
Mas não adianta amar sem tirar os pés do chão
Amor é como pluma, bate no coração e voa para eternidade.