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quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O Dito

Ele ao encontrar si mesmo
Arrependeu-se
Do que foi, e é
Além de tudo, foi homem e mulher
Foi mágico, além da esperança
Foi selva e estrada
Sobe seu corpo
Passaram mais de mil cavalgadas
Foi deserto... Também ventania
Chegava aonde queria
Como poeira, vinha de todo lado e entrava em qualquer lugar
Queria estar ali... Não podia!
Mas se arrependia do que não fez, das tristezas
Das saudades, dos horizontes ainda não vistos
Caminharia aonde quer que o encontre, ele mesmo
E sem total companhia, sem total franqueza
Com passos geométricos, alegria nas mãos
Coçava a barba branca, que já caia em decúbito
Deixando um rastro no caminho onde passava
Traçando o que sabia sobre a vida
Apontando seus dedos, mais afiados, todo o dia
Sua língua já inóspita e bebia
Tudo o que haveria de haver, para nós
Tudo o que tinha em seus bolsos
Tudo que o vento levava e a água trazia
Tudo o que nos restava, o amor.

Ave Mansa

Era passado... Todos os cães ladravam
A água escoava o rio
Lama leve, ligeira... Passava
Os pés molhados, nadadeiras
E como tal flor de pele larajeira, se deitava ao bem-te-vi
Aonde e ali, aonde queira
Se via logo ao passar, qualquer poeira
Que tal e qual, qualquer cegueira
Via mais longe que qualquer, e tanto, mais fogueira
Que queimava todo lado, toda água, todo canto
Escondia sob o tapete oco, as trincheiras da morte
Com o compasso em riste e total sorte
Se via a sorrir, como finge, como pode
Através da vidraça, já embaçada pelo orvalho cedo
Já sentia o caminhar negro e puro, das crianças a solta
Se fossem vento, manavam o tempo
Como mão de velho, tão calma e pesada, mais chegada a morte
Com mais vida, que a própria vida
Até se via a grama desenhar o corpo, lá fora
mas aqui dentro
É que ocupava espaço, é que ocupava o tempo
Espaço que era curvo, que era lasso, que era todo
Espaço esse, dentro de mim que não existe tempo, nem nas mais rugas víceras
Nem nos mais frouxos sentimentos
Me senti pesado, caí sobre mim
Me senti passado, o hoje ergueu-me em estátua de vidro
Polida e muda, como burro
Que chegando ao caule d'árvore, ouviu ave dizer:
-Eu sou o seu maior problema e minha própria solução.

Tarântula

Subia como forma vertical do medo
Desejo em pele de cordeiro; beijo de selva
Pálpebra e um cais inabitável
Desenhava no jardim, o sentido das espinhas
E os frios, e as obras, como tal alegoria
Distinta
Carpia sua própria solidão
De teia infinita e casta, como palma da mão
Não descia, circunspecta, e fria
Como coração de amante
Ficava ali, como foice, arrancando a vida, de quem sabia voar.